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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O Poder Judiciário e a mulher de Cesar

Um juiz federal foi flagrado dirigindo o carro de luxo, mandado apreender por ele, pertencente a um bilionário em decadência cujos negócios mais que suspeitos estão sob exame da justiça. Há tempos, um juiz foi notícia por dar voz de prisão a um funcionário de empresa aérea que, no exercício estrito de sua função, não lhe facultou o embarque em voo que já havia sido fechado. Outro, apareceu na mídia por ter, alegadamente, invocado a condição de magistrado para furtar-se a fiscalização rotineira de trânsito. Neste caso, agrava-se a circunstância, de vez que a agente do poder público que questionara o condutor do veículo foi condenada por desrespeito à excelência por afirmar: “ele é juiz, mas não é Deus”. Das possíveis irregularidades associadas ao magistrado e seu carro nada se quer saber, face a tamanho desrespeito. Pelo menos é o que parecem ter entendido as excelências de segundo grau. Não é necessário recordar as peripécias financeiras do tristemente famoso juiz Lalau, cujo enriquecimento ilícito mediante desvio de verbas para a construção do prédio de um tribunal regional do qual era presidente o levou, mediante sentença transitada em julgado, para a cadeia, além de ter cassada a aposentadoria compulsória.
No caso dos magistrados, não é só a corrupção rasteira que causa repulsa. O abuso de poder, o favorecimento ilícito de qualquer natureza em decorrência da condição judicante, qualquer desvio da correção estrita que, se não a lei, a majestade da justiça requer, a simples deselegância no exercício funcional, tudo isso é, a um tempo, revoltante e assustador para o povo, que vê – como deve ver no regime democrático-republicano – o Poder Judiciário como último refúgio e garantia dos que não têm outros meios de efetivar seus direitos.
Quando a ministra aposentada Eliana Calmon, então no exercício da Corregedoria-Geral da Justiça Federal, declarou que havia “bandidos de toga”, causou enorme celeuma, capitaneada pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, ministro Antônio Cezar Peluso. Ao ministro Peluso parecia que tal declaração se refletia negativamente sobre o Poder Judiciário, enlameando a fama dos magistrados em geral.
Não acompanho o receio do eminente presidente, à época, do Supremo Tribunal Federal. A ministra Calmon jamais disse que todos, ou a maioria, ou sequer grande número de juízes merecia a pecha desmoralizadora. O que sua excelência afirmava era o saudável interesse em apontar a excrecência exatamente para evitar a desmoralização de algo tão essencial ao Estado de Direito: o respeito à judicatura em decorrência do reconhecimento do caráter ilibado de todos os magistrados. E o único modo de afirmar esse compromisso incondicional da magistratura, composta por seres humanos falíveis e suscetíveis de desvios de conduta, era que o próprio corpo do Judiciário se antecipasse à repugnância popular e extirpasse de seu meio os que desonrassem a toga, estes sim, verdadeiros agressores dos valores republicanos e da imagem dos colegas.
A Constituição exige, para integrar os tribunais superiores, reputação ilibada. Não o exige, expressamente, da magistratura em graus inferiores. Entretanto, parece comezinho que a boa reputação dos magistrados em geral seja um requisito fundamental para a credibilidade da Justiça.  
A palavra reputação vem do latim reputatione, derivada do verbo putare, que significa supor. Não é estranho, pelo menos nos meios jurídicos, o adjetivo putativo, que significa que algo é suposto, mesmo que em virtude apenas de uma aparência enganosa. Reputação é uma avaliação social difusa e espontânea que de nenhum modo se confunde com sentença condenatória transitada em julgado. A sentença condenatória transitada em julgado, no regime da presunção da inocência, é essencial para que se atribua o delito ao agente, mas não é isso que define sua reputação.
Caio Júlio Cesar, patrício romano que viveu entre 100 a. C. e 44 a. C., foi questor, edil, pretor, governador da Gália e da Ilíria com poderes proconsulares, cônsul, ditador e Pai da Pátria. Frequentemente seu nome é associado ao título de imperator, usualmente atribuído a um general vitorioso antes da celebração ritual de seu triunfo. A Cesar, porém, esse título foi dado em caráter permanente, como lhe foram dados, vitaliciamente, os poderes de tribuno, de censor e de ditador.
Essa carreira brilhante começou, porém, de modo precário. Embora sua família fosse nobre, não era abastada. Sua tia Júlia, casara-se com Caio Mário, plebeu que se tornara um general vitorioso e fora cônsul por sete vezes. Mário se havia convertido em líder dos populares, por oposição aos optimates, liderados por Lúcio Cornélio Sila. As tensões sociais da Roma do primeiro século a. C. explodiram em uma guerra civil que, depois da morte de Mário, foi vencida por Sila e seus partidários. Sila foi proclamado ditador vitalício e moveu perseguição aos apoiadores e parentes de Mário, entre eles seu jovem sobrinho, que, tendo a vida preservada por ser considerado politicamente inofensivo, foi obrigado a deixar Roma. Só com a morte de Sila, em 78 a. C., Cesar voltou à cidade e iniciou o caminho que o levaria ao poder máximo.
Em 63 a. C. Cesar foi eleito Pontifex Maximus, cargo vitalício que, sem impedir os demais que lhe alicerçariam o poder político, dava-lhe o controle sobre a vida religiosa de Roma. Cornélia Cinila, sua primeira esposa, morreu de parto em 69 a. C. e Cesar casou-se, no ano seguinte, com Pompeia Sila, neta do falecido ditador. Em 62 a. C., era preciso celebrar os ritos da Bona Dea (Boa Deusa), realizados na casa do Pontifex com a ausência obrigatória de todos os homens. Pela posição do marido, cabia a Pompeia supervisionar essa celebração. Aproveitando-se da ausência masculina, Públio Clódio Pulcro, jovem imberbe que se imagina enamorado de Pompeia, conseguiu entrar na casa disfarçado de mulher, possivelmente com a intenção de seduzi-la. Nada indica que Pompeia fosse conhecedora ou culpada desse sacrilégio, conforme o próprio César admitiu publicamente. Entretanto, ele divorciou-se dela, alegando que "à mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta". Como se vê, não se tratou de culpabilidade, mas de reputação.
Bom seria que todos os magistrados, dos ministros de STF ao mais novo juiz substituto aprovado “raspando” em algum dos concursos que reprovam a maioria esmagadora dos candidatos, guardassem ciosamente a mesma preocupação do Pater Patriae e se recordassem de que sua reputação não é, como a de nós outros mortais comuns, um assunto particular. É um absurdo supor-se que seja preciso “provar” que o comportamento de aparência indecorosa de um juiz “não seja crime”. O decoro da magistratura é patrimônio da sociedade, que nela deposita suas últimas esperanças de que a honestidade e a decência se imponham à vida pública. Cesar divorciou-se de Pompeia quando sua reputação se tornou duvidosa, mas não há como divorciar-se, na mente e no sentimento do povo, a confiança na Justiça da confiança no juiz. Que me desculpem suas excelências, mas não lhes cabe o “benefício da dúvida”. É preciso que, tal qual a mulher de Cesar, estejam acima de qualquer suspeita, não depois de esquadrinhado seu comportamento no devido processo legal, mas diante da luminosidade solar do que aparece à opinião pública.

A vaidade, a ambição, a vertigem do poder, todos esses pecados grandes e pequenos que assolam a vida de qualquer um de nós não podem ser perdoados aos magistrados. São eles os que guardam a lei, o direito, a esperança do cidadão na vida democrática e civilizada. Os que não quiserem ou não puderem suportar o fardo hercúleo dessa responsabilidade grandiosa, por favor, procurem outra coisa para fazer.

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